Miar à Chuva

terça-feira

Concordo e assino por baixo!

Quando o comércio quiser


"As compras de Natal são sempre, para mim, momentos de enorme prazer.
Nunca percebi muito bem as pessoas para quem as prendas desta época são uma obrigação instituída, uma coisa que tem de ser, uma espécie de competição para ver quem despacha mais e no mais curto espaço de tempo, tudo a correr e como se estivessem a libertar de um terrível frete sazonal. De lista na mão, vão riscando os nomes, "a tia já está, a prima já está, o chefe já está", e tudo tem um ar mercenário que me aflige muito.
Eu demoro imenso tempo a pensar no que cada pessoa gostará, porque o Natal é também isso, pensar mais um bocadinho nas pessoas, e fazê-las sentir que são importantes para nós, que não são apenas um nome no meio de uma lista, que aquela prenda que lhe damos foi pensada para ela, e só podia mesmo ser para ela.
E depois vêm ainda as horas que passo em casa a fazer os embrulhos, porque também esses têm de ser especiais - já para não falar dos cartões que os acompanham.
Resumindo as compras desta época, para mim, são também um ritual, tal como espalhar pela casa os presépios todos, e armar a árvore, e enfeitá-la - e como tal necessita de tempo.
Começo sempre muito cedo, com as lojas ainda pouco movimentadas - mas nunca antes de finais de Novembro.
Mas este ano, não sei porquê, se calhar levando ao extremo aquela estafada frase de que "Natal é quando um homem quiser", o comércio decidiu querer muito cedo - e apareceu um calendário estranhíssimo, e ao tempo que as lojas estão superlotadas, e as pessoas andam afadigadas nas compras.
Mas afadigadas mesmo transpiradas, despenteadas, aos encontrões a todo o Mundo, sem paciência e a berrarem pelos filhos pequenos que ficam parados diante dos monstros que abundam nas prateleiras infantis. Como se estivéssemos no dia 24 de Dezembro e elas tivessem descoberto que ainda lhes falta riscar os nomes da lista inteira.
Porque agora o Natal começa logo nos primeiros dias de Outubro - ou até antes. Acabamos o último mergulho na praia e já nos furam os tímpanos com o "jingle-bells", o "I wish you a merry christmas", ou a "noite feliz" em várias línguas, atirados pelos altifalantes de todas as grandes (médias, pequenas) superfícies comerciais. É uma overdose de cânticos que até eu, a indefectível, já dou por mim a escolher as lojas onde entro pela música que não dão.Por isso percebi tão bem a angústia daquela empregada que, há dias, me pedia "por favor, não passe diante daquele Pai Natal, porque os sensores fazem com que ele cante de cada vez que alguém se lhe atravessa na frente... Está ali há quase dois meses e eu já não o posso ouvir..."
Claro que lhe fiz a vontade. Até porque a pobrezinha me pareceu pálida, com olheiras, e instintos assassinos, coitada.
Mas, se calhar, era por causa das luzes especiais.
Também elas a caírem-lhe em cima há dois meses..."
Texto de Alice Vieira, JN de 25/11/2007


É impossível não gostar da Alice Vieira.
Uma escritora portuguesa que desvenda com uma simplicidade desarmante e com palavras singelas o mais complicado sentimento ou pensamento que habita no nosso íntimo.

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1 Comments:

  • É impossível não gostar da Alice Viera, uma das grandes escritoras para miudos e graúdos do nosso país. E em relação ao Natal ela descreve exactamente o que eu sinto, uma época que eu gosto tanto mas que o comérico está a estragar.
    Beijinhos da Ana Cristina

    By Blogger Unknown, at 11.12.07  

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